E o Verbo Se Fez Sangue



O rapaz estava ausente num canto da sala. O professor apareceu na porta, deu uma olhada varrendo todo o espaço e entrou. Aula de Introdução à Semiótica. Começo de semestre depois das férias de julho.
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Na véspera daquele dia o rapaz chegara. Estava radiante por ter descansado um mês inteiro do barulho infernal da cidade grande.
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Abriu o portão, cumprimentou o porteiro com um sorriso de boa tarde, disse algumas palavras, pegou o elevador e subiu.
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Quando fechou a porta atrás de si teve um choque: tudo era diferente. Não ouvia mais a voz de sua mãe brava gritando com os netos, irmãos. Sentou-se no sofá da sala e ficou a sentir-se a pessoa mais sozinha do mundo. Esperou. E o tempo foi passando. Mas não ouviu seu pai chegando e o barulho do carro ao lado na garagem enquanto ele, o rapaz, assistia à TV. Não era a mesma casa. Não havia o pai perguntando de sua pessoa para a mãe.
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Averiguou o quarto. Não era também o mesmo. Foi à cozinha procurar alguma coisa para comer. Tudo diferente. Não havia o café que sua mãe preparava. Não havia biscoitos, pães de queijo. Nada. Só o vazio.
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Foi ao banheiro, desesperado. Contou todos os azulejos. Não era o mesmo também. Virou-se para o espelho. E, de repente, o outro. Não era ele. Estava nu. No mais profundo vazio de si mesmo. E então chorou, chorou... Chorou tanto que já não havia mais o que chorar.
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Seu corpo estava ali no piso frio do banheiro. A porta trancada. Ninguém o acharia. Era o fim. O fim mais ermo e sombrio do mundo.
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Ao lado da privada. Braços esticados alcançando o cesto de lixo de um lado e um caco de espelho do outro. Seu reflexo no espelho quebrado. Partes de um homem espalhadas pelo banheiro todo. E silêncio apenas. Não tinha mãe, não tinha pai, não tinha irmãos, não tenha sobrinhos para chamá-lo de filho, de mano, de tio.
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Estava só. Sem família. Sem afeto. Sem agrados. Entre quatro paredes frias. No silêncio de sua solidão. Era o outro. O outro que ele havia esquecido. O outro que batia à porta implorando vida.
O outro arrombou a porta, acariciou o rapaz e, no meio de sangue e lágrimas o matou.
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